domingo, 20 de dezembro de 2009

 




















     Ao almoço, reparaste no fio de ouro e na minúscula imagem dependurada que te faz lembrar aquela que viste num artigo sobre o ouro dos Incas. A criança, sentada com um macaco de peluche preto e castanho ao colo, encomendara uma tarte de espinafres, mas da fatia que tinha à sua frente, retirava agora com a pinça formada pelas pontas do polegar e do indicador pedaços pequenos de verde e de branco de verde e de branco de verde e de branco; as pessoas estavam a achar-lhe graça e a rir-se para o velho que a acompanhava. Não quero mais tarte. Que idade tenho? seis anos, ele não é meu avô, é meu tio, tem quase sessenta, parece mais por causa de uma doença, agora está melhor, só de vez em quando é que fica rabugento. Bebe a coca-cola que a tua mãe está quase a chegar, ela ainda demora, demora sempre quando sai com o namorado novo. Ao almoço, reparaste no fio de ouro e na minúscula imagem dependurada que te faz lembrar aquela que viste num artigo sobre o ouro dos Incas.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

                                                                                      
     Tenho a certeza de que não existe Deus nem Inferno, mas o olhar das máscaras assusta-me, talvez exista Purgatório: é um lugar de espera e nós estamos sempre à espera de alguma coisa. De onde vem este eco? Não sei, parece-me que vem de dentro do teu corpo, talvez o teu  interior esteja completamente vazio, não digas disparates! Porquê? Já viste a tua alma, o teu carácter, a tua personalidade? Achas que ocupam algum lugar no teu corpo? Isso não são órgãos, o meu coração, os pulmões, o fígado: como respiraria, como circularia o meu sangue sem eles; estão, asseguro-te, dentro de mim, sinto-os, obviamente não estou vazio. Esta é uma discussão inútil, mas as máscaras continuam a assustar-te e eu não escondo o meu desconforto por vê-las aqui.

sábado, 10 de outubro de 2009

     Tinha sede, bebeu água; começou a pensar no projecto do livro que costumava associar à náusea, ao frio, à solidão, à angustiante sensação das intermitências do trabalho, das dúvidas sobre o já escrito, emendado e refeito até ao absurdo. Ficou agoniado. Para dizer a verdade, até aí, só uma frase lhe agradara: "Procurem nos baixos relevos o significado da morte". Não sabia explicar o que o fascinava em tão singular expressão, e que importância tinha isso? Esforçar-se-ia por achar-lhe sentido, entretanto, deleitava-se com a ironia de não saber o que fazer com ela.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Extraído do conto 'Agora, o banco imóvel no jardim', de 2009, a publicar em 2010

     «Quase septuagenária, a proprietária despreza o dinheiro do aluguer que lhe pago, tolera-me porque, de vez em quando, pode atravessar a rua e aliviar a solidão da viuvez e do abandono do filho único sempre em viagem. A vida que levo levanta-lhe dúvidas sobre a minha sanidade mental, sobretudo quando me encontra a queimar telas e desenhos no jardim, mas, como conheceu bem a minha mãe e, as mais das vezes, me vê a saudá-la de longe com a grande caneca de porcelana por onde tomo o café de cevada ou a ler à sombra da figueira, em poses de gente normal, lá acalma as suas aflições por um tempo."
"...nem os reis iriam para o céu sem levar com eles os ladrões, nem os ladrões iriam para o inferno sem arrastar com eles os reis.", Padre António Vieira, 1641