sexta-feira, 30 de julho de 2010

     É sábado à tarde e o tempo prenuncia as quentes monotonias do Verão próximo; a uma mesa redonda da esplanada do café Mythos – o mais chique da avenida marginal, a mais movimentada da cidade – estão sentados dois casais e duas crianças: os homens, grisalhos e ralos os cabelos, suspiram para as suas chávenas de café; as mulheres, juvenis os gestos e a graça, vestidas de gargalhadas coloridas, sorvem laranjadas por palhinhas às riscas azuis e brancas; as crianças, um menino e uma menina, cada uma ao lado de sua mãe, lambem enormes cones de sorvete derreado ao sol, a esvair-se em fusões cremosas de baunilha e morango.
     – Papá, hoje prometeste que subíamos no balão, lembras-te? – pergunta a voz de sete anos com sabor a morango do menino, enquanto aponta com o dedinho indicador para o enorme balão de ar quente aos gomos amarelos violeta e verdes, plantado do outro lado da marginal, junto ao areal da praia, que costuma subir às horas certas, enlevando os turistas na visão aérea da cidade. O pai contempla o balão sem responder, mas sorri e todos sabem que vai cumprir a sua promessa.
     – Vamos lá, então, vamos lá.

quinta-feira, 15 de julho de 2010











    
     Nem sei se é bom vivermos os dois na mesma  cidade: é grande demais para o acaso de um encontro e o propósito que temos não nos impele a coincidir nos passos que há muito, desde sempre, as ideias apartam. Sabe bem este café, diferente no sabor daqueles das pequenas cápsulas, café azul, café violeta, café vermelho, café dourado, a máquina das maravilhas coloridas que me ofereceste avariou-se, sabes, começou a deitar água, encheu a chávena, a chávena transbordou e pronto, reparei logo na pequenina luz vermelha sempre acesa, como um semáforo, a avisar que se acabaram os cafés. Tenho um amigo muito diferente de ti, gosta de me ouvir falar, creio não conhecer dele senão meia dúzia de monossílabos usados com moderação para comentar as pausas do meu discurso; acho-lhe graça porque coloca sempre os óculos para me escutar, como se lesse nos lábios, nos olhos, na expressividade das rugas, as palavras que ficam por dizer. Da última vez encontrámo-nos numa livraria, convidou-me para almoçar, estava disponível, aceitei, ele pagou e consegui ouvir-lhe duas ou três frases completas cujo exacto sentido não recordo, mas lembro-me de o achar particularmente feliz, coisa rara, e eu senti-me também muito alegre nesse dia.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

                              
     Reparam na folha de jornal onde alguém colocou os restos de um repasto destinado aos cães vadios que deambulam pelas redondezas, uns quantos bagos de arroz, ossos de aves completamente descarnados, dois pombos aproximam-se a avaliar a aportunidade, começa a soprar uma brisa, é já mais noite dentro do dia; de novo a esquina, onde duas mulheres de roupas berrantes continuam juntas, a mais feia, ou apenas a que está demasiado cansada, conta à outra uma história ou uma anedota, a da camisola encarnada brinca com um cão preto e branco, aproximam-se dois sujeitos, um deles conversa animadamente ao telefone e termina cada frase com um movimento amplo do braço, como se estivesse sempre a dizer tudo ou definitivamente, o outro, de argola na narina direita e grossas correntes tatuadas nos pulsos, a compor a aparência de saltimbanco, dirige-se às mulheres, a do cão afasta-se, vira as costas ao grupo e pôe-se a assobiar El Once; um cão fareja a folha de jornal, talvez não tenha sido o primeiro a encontrá-la, mas há ossos bastantes para pôr fim ao seu jejum.

sábado, 27 de março de 2010

     Conjuntura I (reflexão de um não marxista)

     No Capital, Karl Marx - que viveu e escreveu em pleno século XIX, longe ainda da sofisticação do capitalismo global dos nossos dias -, refere que o essencial objectivo do capital é reproduzir-se e que, simplificando o raciocínio, na sequência desse processo, gera o chamado capital sombra, uma espécie de dinheiro virtual, capaz de, em certas circunstâncias, fazer ruir todo o edifício económico/financeiro; eu diria que este, para se manter de pé, depende, única e exclusivamente, de fé (a crescente laicização da sociedade teve um efeito de aparente sacralização no domínio da economia e das finanças: temos de acreditar na actual fórmula do crescimento. A doutrina do crescimento infinito não é apenas a maior mistificação do nosso tempo, também é a mais perigosa e a mais absurda. Num mundo onde reinam impunemente mistificadores, especuladores, falsificadores, mentirosos e bandidos de toda a espécie (alguns servidos por excelentes escolas de marketing e comunicação), não podemos deixar de reconhecer em Marx a capacidade para explicar o mundo actual e boa parte das suas fragilidades.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

                                                   
     A muita aspereza da jornada foi tolhendo em incómodos a vontade de subir: o peso da mochila, o cabelo esparramado na testa, qualquer coisa dentro da bota esquerda a corroer o pé; já do mar se afastara tanto e ainda tamanha imponência na montanha à sua frente e tão apressada a pulsação, a dor pelo corpo todo a mandá-lo parar, a não querer mais esforço; resolveu-se a prosseguir, sacudiu os ombros, com o indicador traçou uma linha na testa a riscar o suor, respirou fundo; esquecer-se, apenas esquecer-se na belíssima vista da cidade, pegou na máquina e surpreendeu a urbe desprevenida numa fotografia cheia de sol.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

     As noites são cada vez mais longas. Quem dera agora mesmo alguma claridade, ilusão de amanhecer, ar de dia claro e fresco e frio, os cabelos a sentir o tactear do sol. Cala-te, não estás bem, a esta hora é sempre de noite, há-de amanhecer, há-de amanhecer… e, por favor, não grites, as pessoas estão a dormir. As tuas palavras inquietam-me, fazem-me mal, repara… ali, o gato preto sentado a olhar para ti, é um aviso para nos irmos embora. Cala-te, deixa o gato em paz. Não ouves... um choro, lágrimas de angústia, de frio, de escuridão, vejo escombros e pó: são os ecos do nosso lamento futuro; estou farto deste lugar! Presta atenção: quero que faças de conta que não estás aqui.

domingo, 20 de dezembro de 2009

 




















     Ao almoço, reparaste no fio de ouro e na minúscula imagem dependurada que te faz lembrar aquela que viste num artigo sobre o ouro dos Incas. A criança, sentada com um macaco de peluche preto e castanho ao colo, encomendara uma tarte de espinafres, mas da fatia que tinha à sua frente, retirava agora com a pinça formada pelas pontas do polegar e do indicador pedaços pequenos de verde e de branco de verde e de branco de verde e de branco; as pessoas estavam a achar-lhe graça e a rir-se para o velho que a acompanhava. Não quero mais tarte. Que idade tenho? seis anos, ele não é meu avô, é meu tio, tem quase sessenta, parece mais por causa de uma doença, agora está melhor, só de vez em quando é que fica rabugento. Bebe a coca-cola que a tua mãe está quase a chegar, ela ainda demora, demora sempre quando sai com o namorado novo. Ao almoço, reparaste no fio de ouro e na minúscula imagem dependurada que te faz lembrar aquela que viste num artigo sobre o ouro dos Incas.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

                                                                                      
     Tenho a certeza de que não existe Deus nem Inferno, mas o olhar das máscaras assusta-me, talvez exista Purgatório: é um lugar de espera e nós estamos sempre à espera de alguma coisa. De onde vem este eco? Não sei, parece-me que vem de dentro do teu corpo, talvez o teu  interior esteja completamente vazio, não digas disparates! Porquê? Já viste a tua alma, o teu carácter, a tua personalidade? Achas que ocupam algum lugar no teu corpo? Isso não são órgãos, o meu coração, os pulmões, o fígado: como respiraria, como circularia o meu sangue sem eles; estão, asseguro-te, dentro de mim, sinto-os, obviamente não estou vazio. Esta é uma discussão inútil, mas as máscaras continuam a assustar-te e eu não escondo o meu desconforto por vê-las aqui.

sábado, 10 de outubro de 2009

     Tinha sede, bebeu água; começou a pensar no projecto do livro que costumava associar à náusea, ao frio, à solidão, à angustiante sensação das intermitências do trabalho, das dúvidas sobre o já escrito, emendado e refeito até ao absurdo. Ficou agoniado. Para dizer a verdade, até aí, só uma frase lhe agradara: "Procurem nos baixos relevos o significado da morte". Não sabia explicar o que o fascinava em tão singular expressão, e que importância tinha isso? Esforçar-se-ia por achar-lhe sentido, entretanto, deleitava-se com a ironia de não saber o que fazer com ela.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Extraído do conto 'Agora, o banco imóvel no jardim', de 2009, a publicar em 2010

     «Quase septuagenária, a proprietária despreza o dinheiro do aluguer que lhe pago, tolera-me porque, de vez em quando, pode atravessar a rua e aliviar a solidão da viuvez e do abandono do filho único sempre em viagem. A vida que levo levanta-lhe dúvidas sobre a minha sanidade mental, sobretudo quando me encontra a queimar telas e desenhos no jardim, mas, como conheceu bem a minha mãe e, as mais das vezes, me vê a saudá-la de longe com a grande caneca de porcelana por onde tomo o café de cevada ou a ler à sombra da figueira, em poses de gente normal, lá acalma as suas aflições por um tempo."
"...nem os reis iriam para o céu sem levar com eles os ladrões, nem os ladrões iriam para o inferno sem arrastar com eles os reis.", Padre António Vieira, 1641